Ateliê 33 [Larissa Prado]

Quero falar sobre histórias que inventamos para seguirmos em frente. Sobre mentiras que criamos para podermos dormir à noite. Muitas vezes, a solução de uma dor começa com outra. Viver é estar preso nessa espiral infindável. É cair num buraco que levará a outro. 

Nos últimos meses perdi a capacidade de dissimular para mim mesmo. Depois do choque de realidade por qual passei, é difícil continuar com os mecanismos de escape. Você fecha os olhos e tenta mentir para si mesmo, relembrar quem era antes de se tornar quem se tornou. Lembrar que um dia foi bom ou pelo menos tentava ser. 

O que é o homem sem dignidade? O que é o homem quando se perde todos os valores? 

Morávamos eu e minha única filha, Beth, no apartamento 21. Quando nos mudamos, metade do prédio ainda estava desocupada. Estávamos entre os primeiros moradores. 

Éramos felizes na maior parte do tempo. Beth sonhava em ser pintora, acredito que essa ambição foi incutida nela por mim quando a presenteei aos cinco anos com um jogo de pintura para que talvez se tornasse uma pintora melhor do que fui. Eu não passo de um artista frustrado. 

Beth era talentosa e eu acreditava na sua capacidade. A vida seguia seu curso normal, rotineiro, tudo estava em ordem na segurança das atividades cotidianas. Nada de novo, tudo sempre no seu devido lugar. Até o dia que ele chegou em nosso prédio e se instalou no apartamento 33. 

Era pintor, dizia ser um artista independente, o que sempre me intrigou, pois, seu talento era estupendo, suas obras de arte pareciam ter vida própria. Eram assustadoras de tão realistas. Ele foi o elemento surpresa em nossas vidas. A grande pedra que muda o curso de um rio.

A princípio encontrei-o no elevador, geralmente ele saía cedo assim como eu, a diferença era que meu destino era o trabalho e o dele, caminhada pelo parque. Parecia um rapaz bom, nunca pude precisar sua idade, ele tinha algo de muito envelhecido no olhar, uma sapiência e malícia próprias de quem já viveu muito e viu de tudo, eram olhos desdenhosos. 

Em contrapartida, o rosto em si era jovial, o sorriso tinha algo infantilizado, a pele era tão pálida que flertava com tons azulados, diria que era atemporal. Não se podia saber ao certo quantos anos tinha. Era um desses tipos misteriosos. 

De conversas casuais começamos a aprofundar em assuntos mais sérios até o dia que comentei sobre Beth e seu amor pela pintura. Ele se prontificou em ensiná-la tudo o que sabia e eu aceitei envolto em tal euforia que era como se tivesse ganhado um bilhete premiado.

Quando contei a notícia para Beth ela se mostrou um pouco insegura. A sua timidez a impedia de aproveitar os momentos, mas com o passar dos dias ela se entregou à empolgação. 

As aulas aconteciam todas tardes, não me atentei ao fato de talvez ser uma quantidade excessiva de exercícios, mas vê-la feliz me fazia tão pleno e realizado que não me importava se ela passasse todos os dias no apartamento 33 com seu novo professor de arte. 

Ele era bem articulado mesmo quando se entregava aos devaneios. Era um homem sensível, digno. Ignorei todos os meus instintos que alarmavam sobre sua estranheza. A atemporalidade, a pele arroxeada e olhos maliciosos. Havia algo errado com ele que eu me negava a ver, continuava dizendo a mim mesmo que Arthur era o mentor ideal para Beth.

Não acredito hoje que Arthur seja sequer seu nome verdadeiro. Perdi minha Beth por conta de tolices. Pagamos um preço alto por conta de ingenuidade. Amaldiçoados os ingênuos e puros de coração. Admitir isso dói mais que a lembrança dela impregnada por toda casa e em toda minha história de vida. 

Como a perdi? Bem, tudo começou quando Arthur veio até mim num fim de tarde e declarou “Elizabeth desapareceu...” ele estava muito calmo ao dizer isso, como se anunciasse apenas uma mudança climática imprevisível.  

No momento não interpretei aquela frieza, não reparei nela, confiava nele. Paguei o alto preço pela necessidade de ter um amigo, alguma ligação, apostei todas minhas fichas em um estranho, em suas palavras orquestradas. Quão estúpido me sinto hoje? Impossível mensurar.

Passamos a procurá-la por todos lugares. Informei as autoridades, espalhei cartazes e usei de todos meios possíveis como TV, rádio e internet que ainda era incipiente no fim dos anos 90.

Eu fiz tudo que podia para receber alguma pista, tudo que era necessário para rastreá-la. No fundo, à medida que o tempo passava, sabia que Beth estava morta. Não queria admitir a minha perda. Nunca mais consegui dormir imaginando-a entrar pela porta da sala. Todas essas ilusões que criamos para nos manter firmes. 

Durante todo processo de busca fui amparado por Arthur, ele se mostrava muito solícito. Passava noites a fio apenas me ouvindo lamentar. Era uma ajuda bem-vinda até que uma presilha de cabelo mudou tudo.

A polícia havia arquivado o caso após 6 meses de desaparecimento sem pistas. Em uma das noites de insônia que Arthur passou me fazendo companhia ao levantar para ir embora ele deixou cair do bolso do casaco uma presilha de cabelo que ela sempre usava. 

A princípio não a vi, nem ele, somente após levá-lo até a porta e me despedir vi o cintilar do objeto em meu caminho. De repente foi como se um véu tivesse caído de meus olhos, uma sequência de associações invadiu minha mente desde o primeiro dia que levei Beth até o ateliê de Arthur. As suas pinturas aterrorizantes e tão realistas.

Guardei a presilha e decidi falar com Arthur no dia seguinte. Não dormi nem uma hora ao menos, fiquei a rolar pela cama imaginando o que diria. Nenhuma das palavras que pensava seriam usadas no momento oportuno. 

Assim que o sol nasceu, eu saltei da cama, amarrotado e zonzo, engoli um café sem açúcar e fui até o ateliê de Arthur. Quando encostei na porta ela se abriu, estava apenas recostada.

Adentrei o recinto e uma estranha sensação de horror me assolou em arrepios desagradáveis. As pessoas nas telas de pintura tinham feições de puro pânico e dor. Encarei olhos muito realistas. 

A princípio não chamei pelo pintor, fiquei ali parado observando em volta um número sem fim de telas expostas, o cheiro forte de tinta rebentou em mim uma incômoda enxaqueca. O nariz coçava e ardia. Fiquei um tempo parado, apenas olhando de uma tela para outra até que meus olhos repousaram sobre uma tela coberta por um lençol branco. 

A curiosidade me desviou do verdadeiro motivo que me levara até lá. Então, aproximei e tirei o lençol. O que vi na tela me fez estremecer, drenou o pouco de força que me restava.

Elizabeth, minha amada filha estava ali pintada, suas mãos estavam levantadas na altura do rosto como se estivesse se esquivando de algo, de um golpe terrível. Ela tinha uma feição tenebrosa de pânico, a boca escancarada soltava um urro de assombro. Desconcertado deixei cair da minha mão a presilha, no espaço silencioso o tilintar ressoou como se fosse um objeto maior.

Arthur surgiu atrás de mim e quando me virei fui arrebatado por seu sorriso sempre amistoso. 

— O que achou da minha nova obra?

O tom foi zombeteiro embora cordial. Eu não tinha palavras, não sabia o porquê daquela pintura me incomodar até que ouvi a voz de Beth muito distante, em outro tempo e espaço. Só consegui perguntar em tom trêmulo.

— O que você fez com ela? O que fez com a minha Beth?

E meus sentidos me abandonaram e a imagem de Arthur segurando sua xícara de chá, trajando seu robe aveludado foi a última coisa que vi.

Quando despertei, estava jogado no mesmo lugar, no chão do apartamento 33, no ateliê de Arthur. Sobressaltado, eu não sabia onde estava a princípio, até recobrar meus sentidos. Fiquei sentado, em estado débil. Quando consegui olhar em volta notei que o apartamento estava vazio como se não fosse ocupado há anos. 

A presilha de Beth era a única coisa material que estava próxima a mim. Peguei-a e analisei tentando me lembrar da ordem dos acontecimentos, tentando trazer alguma ordem para a confusão que sentia se instalar em minha mente. Não sabia o que tinha acontecido, nem porque estava ali. O cheiro de tinta fazia minha cabeça latejar.

Com esforço levantei e me aproximei da janela da sala onde encarei meu reflexo borrado na poeira do vidro. Aquela face, a minha face, era a face do pintor, Arthur. Esse nome, por que me soava tão familiar agora? Arthur, meu nome artístico. 

Quanto tempo havia passado desde que emoldurei minha própria filha? Não sabia, não sabia. Me perdi em todas essas histórias que contei dia após dia a mim mesmo para conseguir seguir em frente. 


desenho realista em preto branco e vermelho de uma mulher com sangue escorrendo dos olhos e o peito rachado mostrando o coração vermelho com chamas ao redor
Flaming Heart - Daniella Salamão