Nunca mais [Larissa Prado]

O que fica mesmo na memória são os acenos e lágrimas de despedidas nas estações. As conversas triviais de um fim de tarde qualquer. Os detalhes que compõe o quadro colorido daquilo que muitos chamam felicidade e não aproveitam enquanto acontecem.

A senhora Eva Hernandez sabia disso porque sofria com a morte do esposo há 27 anos e agora no fim de sua própria jornada não sabia dizer se doía mais perder a lembrança de seu rosto dia após dia ou tentar seguir adiante seu resto de vida sem o companheiro. 

O Alzheimer tinha tomado o lugar do marido, e também seu próprio lugar, ela já não se lembrava do próprio nome, sabia que iniciava com E, mas em alguns dias chamava-se Elvira, em outros Elizabeth, e ela nunca mais pôde se lembrar que seu nome real era Eva. 

A cuidadora, uma moça no frescor dos vinte e seis anos, Alyssa encarava o sofrimento da senhora Hernandez com profissionalismo, e não dava importância para o aumento do número de cigarros que fumava nos intervalos ou para os pensamentos melancólicos que a dominavam quando ficava observando a senhora Hernandez perder sua mente pouco a pouco.

Alyssa não era enfermeira por vocação, e sim, por falta de opções. Foi o caminho mais vantajoso que viu e seguiu, e seus passos tinham sido guiados até ali, ao lado da moribunda Eva Hernandez. 

No início, elas estabeleceram uma relação amistosa. Alyssa gostava de estar com a senhora, não se importava em dormir em sua casa espaçosa e vazia, já não se ressentia em ter que abrir mão de noites com amigos para estar ali apenas para guiar a senhora Hernandez até o banheiro e limpá-la.

Certa tarde, envolvidas pelo aroma do bolo de milho que Eva fez, lembrando milagrosamente da receita e esquecendo-se minutos depois, Alyssa escutou pela milésima vez a história de como a senhora tinha conhecido seu marido numa estação de trem nos anos 50. 

Por conta da memória confusa, a história mudava de versão. Era como ouvir algo novo, mas que a enfermeira já não tinha interesse em saber. Enquanto Eva tagarelava, na maior parte do tempo consigo mesma, Alyssa mirava a paisagem campestre da varanda da cozinha. 

Escutou uma revoada de pássaros atravessar o céu e quando Eva calou-se mergulhando num silêncio contemplativo e ausente, Alyssa perguntou para a senhora se ela não preferiria morrer a viver daquela forma. A idosa não a escutou a princípio e Alyssa julgou não ter ouvido. Por um instante, sentiu-se grata pela péssima audição de Eva e surpresa com a fagulha de crueldade que queimava no seu íntimo.

Por fim, a idosa virou os olhos opacos e leitosos cobertos por uma camada de catarata para a mulher e deu o sorriso mais triste que Alyssa tinha visto. 

— A morte já está aqui comigo de qualquer forma, Alyssa. Não tem por que chateá-la antes da hora.  

Quando a enfermeira achou que Eva retornaria ao torpor silencioso da doença, ela deu um longo suspiro cansado. 

— Mas se quiser ir embora, pode ir. Sei que deve ter tanto para viver enquanto fica aqui comigo, perdendo toda a vida que tem para aproveitar.

Alyssa ficou calada e constrangida. Terminou de beber o café, observou Eva ausente dentro do próprio corpo. Olhar para ela daquela forma a enchia de uma sensação incômoda. Era como fitar apenas uma carcaça humana.

A cuidadora se levantou e entrou apressada na cozinha, encostando-se no balcão. A tontura tomou conta da mente, a cólera subiu por seu corpo espalhando-se em calafrios. Sentia uma mistura de raiva e ressentimento por Eva, a velha demorava a morrer.

Observando a silhueta corcunda da enferma em sua cadeira de balanço do lado de fora, Alyssa sentiu-se tão mal que precisou forçar as vistas para não desmaiar. Tomada pela ira febril, pegou o pequeno forno elétrico em que Eva acabara de assar o bolo e saiu pela porta da cozinha que rangeu, até aquele ruído parecia insultá-la. Eva era tão antiga quanto aquela porta e seu estado decrépito era um insulto diário.

Alyssa parou atrás de Eva. As mãos tortas pela atrite pareciam muito com suas próprias mãos jovens e firmes, Alyssa tinha horror daquela imagem porque seria como Eva no fim da vida: sozinha e enlouquecida em uma cadeira de balanço.

A imagem de Eva representava os efeitos impiedosos do tempo. Desesperada para se livrar daquilo, precisava exterminar aquela imagem para sempre de seu futuro. Levantou o forno elétrico na altura dos próprios olhos e acertou a senhora na cabeça com força. De imediato, um jorro de sangue escorreu pela fronte de Eva manchando o vestido de flores em tons pastéis. Alyssa largou o forno e se jogou no chão entregue ao choro. 

Levou um tempo até se recuperar, as pernas e mãos estavam trêmulas. Alyssa apoiou-se na cadeira de balanço e aparou Eva para que o corpo não pendesse para frente. Sussurrou um pedido de perdão, mas os olhos da senhora estavam sem vida. O rosto pálido coberto por filetes de sangue que teimavam em descer em cascatas do ferimento no topo da cabeça. 

Desnorteada, a cuidadora levantou e colocou as mãos nos cabelos desfazendo o coque impecável. Ela soltou um grito doloroso porque não conseguia parar de olhar para Eva. O problema não era a ausência de vida na velha, afinal, Alyssa convivia com isso há anos. O problema era o sangue. Ele manchou o vestido preferido de Eva, e pensar que era seu vestido preferido a fez chorar mais. Uma onda de amargura a envolveu, e ela permaneceu recostada na porta da cozinha chorando até o fim do dia.

Quando a noite escureceu o céu, Alyssa conseguiu reunir sua força e carregar Eva para dentro de casa. Enrolou o corpo frágil no lençol da cama e carregou para o porão. Lá, Alyssa precisou respirar fundo e recompor as forças que vacilavam. 

O corpo de Eva não pesava. Era como carregar um pássaro morto. Alyssa pensava de maneira incoerente: “Eu matei um passarinho com meu estilingue” lembrando das palavras que tinha dito quando criança para o pai, e em como aquilo a deixava triste por semanas. Ela começou a falar a frase em voz alta à medida que abria um baú antigo que ficava no fundo do porão e tirava de lá todos materiais de costura de Eva: “Eu matei um passarinho com meu estilingue”.

Jogou o cadáver mirrado lá dentro, e as lágrimas voltaram a cair, em cada uma delas sua força se esvaía. Alyssa manteve o baú aberto e juntou as mãos em prece pedindo perdão a Deus por ter matado um passarinho, de forma cada vez mais insana. 

Até que por fim, arregalando os olhos como se tivesse escutado um sopro de voz divina, ela se jogou em cima do corpo de Eva no baú e puxou o tampão que nunca mais se abriu.  


desenho realista de uma pessoa tirando uma blusa azul com a cabeça já coberta por ela e de onde sai uma grande árvore com corvos pretos nos galhos e as raízes da árvore estão por baixo da blusa e podem ser vistas nos pulsos e barriga da pessoa
Dark Interpretations - Daniella Salamão