Rastejando no escuro [Larissa Prado]
O brilho da lua cheia reflete na parede da sala, sua luminosidade é maior do que o olho do sol, pois, tudo está mergulhado no completo breu. Sentada em frente às garrafas vazias, observo o movimento dos galhos das árvores projetados na parede.
As sombras produzem um estranho efeito. Os galhos se transformam em braços, um emaranhado deles tenta me agarrar misturado à fumaça do meu cigarro que dá o tom fantasmagórico a tais sensações oníricas. Tudo não passa de ilusão de ótica, quando me viro e olho pela janela são apenas árvores ao sabor do vento.
Eu me levanto um tanto zonza e amasso o cigarro no cinzeiro, deixando-o ali sobre o monte de bitucas dobradas. Não há o que fazer. São duas e meia da madrugada e o sono não vem. Luto contra a insônia que me faz rastejar sob o peso de uma exaustão insuportável durante os dias.
Vou para o quarto e fico um tempo estagnada no meio do cômodo sem lembrar o que vim fazer, a mente está meio descolada da cabeça. Como se fosse parte de um outro corpo, não mais o meu. Então, abro a gaveta do criado-mudo ao lado da cama, encaro o frasco de soníferos pela metade. Dois não são suficientes, pego o frasco e despejo na palma da mão, uma dúzia deles talvez me faça dormir doze vezes mais.
Eu me lanço na cama como um míssil desgovernado, aqui está tão escuro que não sei mais se estou de olhos abertos ou fechados. Preparo para mergulhar no sono induzido, forçado.
Ao me acomodar entre os travesseiros, uma sensação ruim me assalta, tenho certeza que a porta da cozinha está aberta, posso visualizá-la escancarada como a bocarra de um demônio vomitando algo indesejado dentro da minha casa. Algo que não tem qualquer ligação com assaltantes ou bichos asquerosos e perigosos. A minha inquietação se desloca de um lado a outro advinda de um medo irracional.
Temo que algo obscuro rasteje pela porta escancarada trazido pela luminosidade da lua cheia refletida nas paredes da sala. Algo que se alimenta do escuro, algo diabólico e antinatural, que saiba imitar traços humanos, se tornando uma caricatura humanoide de essência maligna.
Só podem ser delírios! Talvez seja efeito dos soníferos. Rememoro todos meus passos durante a noite, todos me levam ao momento em que tranquei a porta, como faço sempre.
Porém, a força do hábito não me deixa recordar com detalhes o momento em que girei a chave. A automaticidade do ato não permite a certeza necessária de que ele existiu.
Ainda mais zonza, me esforço para sair da cama. Ao tocar o chão com os pés, sinto como se o vento lambesse minhas pernas numa carícia gelada e grotesca. A janela está entreaberta, mas eu tenho certeza que a fechara. Tateando no escuro, vou até a cozinha para checar minha agourenta suspeita.
Quando chego na sala de estar observo os galhos das árvores nas paredes da sala, lá estão os braços longos e malignos. Porém, há algo mais, não sei o que é. Arrepios sobem por minha nuca. Alguém está aqui comigo mesmo que esteja sozinha no centro da sala.
Uma sensação perturbadora me atinge em cheio: algo está me observando.
Quando era criança gostava de brincar de jogo das sombras com meus irmãos mais velhos. O jogo consistia em cada um imitar um animal com as mãos projetando sombras na parede. Precisávamos adivinhar que bicho era. Outras vezes, apenas passávamos as noites criando situações com nossas projeções nas paredes, como um teatro. Eram tempos bons, divertidos, que minha memória evocava agora por causa do estranho acontecimento que se desenrolava à minha frente.
Não consegui me deslocar até a cozinha para checar a porta, mas sabia que ela estava aberta, podia sentir a corrente de ar que vinha do lado de fora. A impressão de ser observada aumentando.
Os galhos projetados na parede da sala não são mais galhos, e sim, imagens intercaladas de estranhas formas diabólicas com bocas escancaradas e deformadas, além de chifres gigantes. Parecem muito reais ao ponto de fazer mal.
Não estou disposta a continuar olhando, saio do meu estado de paralisia e me viro para voltar para o quarto. Eu caminho um tanto incerta e trôpega sem olhar para trás ao mesmo tempo que encaro as sombras nas paredes da casa para me certificar que isso não passa de uma ilusão, um delírio.
Quando entro no meu quarto observo que algo está diferente. A princípio, não sei ao certo o que pode ser. A configuração do cômodo está modificada de alguma forma e não sei o porquê. Não identifico a origem da estranheza.
Olho em volta, a sensação de ser observada intensifica me deixando trêmula. Então, me sento na cama e respiro fundo por três vezes de olhos fechados. Quando volto a abri-los percebo o que está diferente no quarto, são as sombras nas paredes.
Não tem como entrar nenhuma luminosidade por conta das pesadas cortinas, então de onde vêm as sombras?
Intrigada, olho em volta, elas dançam num balé ordenado, de vez em quando se movem graciosas. Galhos de árvores, penso, são apenas os galhos das árvores.
Volto a me deitar no meio da cama e me cubro, sentindo o suor frio brotar na testa e a atordoante sensação só me faz remexer na cama. Meus olhos estão grudados no teto onde se acumulam sombras mescladas, formando uma pintura sombria de formas negras.
Fecho os olhos, ignorando o compasso do meu coração acelerado e as mãos suando. Tento pensar em algo corriqueiro, que me faça sair dessa paralisia do pavor infundado.
Nada me acalma, fecho e abro os olhos e toda vez que encaro as paredes ou o teto, as formas continuam deslocando em representações medonhas como um teste de Rorschach.
- O que está acontecendo com minha cabeça? Devo estar sonhando... – sussurro para mim mesma ao me sentar na cama de novo.
A inquietação leva o sono embora e a preocupação com a porta da cozinha retorna.
Saio da cama, mas ao estender a mão para afastar a porta entreaberta, ela fecha com violência. Olho para trás, na certeza que encontrarei alguém ali de pé, me olhando, mas só existem sombras, uma dezena delas projetadas para fora do teto e das paredes, deslocando-se na minha direção.
Garras horríveis de unhas afiadas me envolvem pelos calcanhares, pescoço e abdômen e me aprisionam num abraço constritor. Não consigo gritar ou me mover, estou asfixiada, mas são apenas sombras, são delírios da minha mente cansada. É no que tento me agarrar para não sucumbir.
Não há no que me agarrar agora, nenhum pensamento, nenhuma tábua de salvação ou luz de farol. Venho rastejando na escuridão há tempos e nessa noite o pesadelo se tornou realidade. Pouco a pouco as sombras deixam o quarto negro e noto entre elas uma figura bem delineada e estagnada no pandemônio de formas difusas.
A sombra no centro do caos sou eu, minha sombra, antes de ir embora de vez desse mundo eu tenho a impressão de ouvi-la gargalhando, mas o som ecoou da minha garganta: “Naquela escuridão, por muito tempo fiquei ali parada, imaginado, temendo, duvidando, sonhando sonhos que nenhum mortal jamais ousou sonhar antes...”
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Crescendo - Daniella Salamão |