Nadar indefinidamente [Larissa Prado]

Tenho receio que minhas mãos se tornem porosas como as paredes da casa abandonada da minha infância. Que se tornem parte de um corpo desmembrado pelo tempo, pelas memórias bloqueadas. Porque minhas mãos são tudo o que me resta depois de tudo. Olho para elas e vejo mapas de linhas indefinidas, pontilhadas. Perdi as digitais, trabalho com produtos químicos há muito tempo e me tornei artificial como um produto embalado com plástico chinês. Eu tenho receio que você também se torne parte das minhas mãos que se desmancham, que se torne lenda, uma história recriada tantas vezes que perdeu o frescor original. Há muito medo me mim hoje, depois de tantos anos. Caminho de volta para a incerteza da infância onde casacos se tornavam monstros nas sombras. Os traumas da infância são as engrenagens que fazem nossas peças adultas funcionarem, ninguém está livre, ninguém está a salvo.
Você sabe quanto tempo uma pessoa viveu pelos sinais nas mãos. É por isso que te escrevo essa última carta. Daqui a pouco vou cortá-las, tirá-las fora, separá-las do resto do corpo, assim poderei mentir para mim mesma sobre o meu tempo, quanto me falta? Quanto perdi? Pedi um delivery de comida chinesa, vou esperar para fazer a última refeição. Amanhã não serei mais a mesma, assim como nunca fui. Sem mãos, a vida se apresentará de outra forma, novos desafios, as mesmas frustrações.
Talvez eu cultive guelras onde antes eram as palmas, e possa nadar indefinidamente no mar profundo das lembranças reinventadas.

desenho realista em preto e branco de um rosto com a testa franzida e o semblante sério com os olhos pretos e soltando uma substância escura aquosa ou de fumaça pela boca que se espalha pela imagem
Sereia - Daniella Salamão